Desde o início da crise sanitária da COVID-19, líderes empresariais de todo o mundo estão no modo de gestão de crise para proteger seu pessoal, seus clientes e suas empresas. Os líderes de procurement não são uma exceção. Uma vulnerabilidade particular exposta pelo caráter global da pandemia está nos supply chains, que vêm sendo pressionados em um grau quase inédito.
À medida que as economias iniciam sua transição para o novo normal, a gestão da crise está evoluindo para a recuperação, com alguns sinais de crescimento começando a retornar. Nossas conversas com líderes de procurement identificaram um tema comum: uma energia recém-descoberta para aplicar as lições aprendidas a duras penas com um período atípico. O novo foco desses executivos é reinventar a função de procurement para que ela possa liderar os esforços na grande reinicialização que se seguirá.
Conversamos com cerca de 160 líderes de procurement de toda a região da Ásia-Pacífico para sabermos mais sobre os temas que estão moldando os esforços de recuperação deles agora e no futuro.
A prioridade dos líderes de procurement: reinvenção
Os líderes de procurement concordaram quase unanimemente que será necessária uma reinvenção da função de procurement, tanto a fim de serem bem-sucedidos nos esforços de recuperação quanto de fazerem a transição para um novo modelo operacional adequado para o novo normal. Conforme resumido no Quadro 1, são cinco os temas centrais mais lembrados pelos entrevistados:
- Recalibrar as metas de redução de custos por meio do uso da mentalidade base zero nas estratégias de categoria e de geração de valor
- Abrir novas oportunidades por meio do investimento em parcerias com fornecedores e inovações conjuntas
- Acelerar a captura de valor, aproveitando a digitalização e o analytics de gastos
- Viabilizar modelos de trabalho remoto por meio da migração para um modelo operacional pronto para o futuro
- Ajudar os funcionários a se adaptarem a novos modelos de trabalho por meio do reforço das capacidades principais e novas
É claro que a ênfase em cada prioridade é diferente, dependendo do contexto do setor. Por exemplo, setores como transporte e logística, bens de consumo, telecomunicações e tecnologia estão se concentrando mais na colaboração com fornecedores, talvez devido à natureza global de seus supply chains e à disrupção que vêm sofrendo com as restrições de movimento. As indústrias pesadas tradicionais, como petróleo e gás, produtos químicos e materiais avançados (como nanomateriais), estão enfrentando enormes desafios de custo resultantes de reduções significativas da demanda, enquanto os líderes em agropecuária e em serviços financeiros também estão buscando transformar suas funções – não por causa de pressões de custo, mas a fim de acelerarem a adoção do digital e do analytics de gastos para abrirem novas oportunidades.
Usar a mentalidade base zero nas estratégias de geração de valor
Quase metade – 46% – das organizações de procurement relatou ter diminuído suas metas de redução de custos como resultado direto da pandemia de COVID-19, enquanto apenas 28% afirmaram ter elevado as metas (Quadro 2). Os entrevistados mencionam uma grande variedade de motivos, inclusive redirecionamento de recursos para aumentar a resiliência do supply chain, dificuldades financeiras entre os fornecedores e grandes mudanças nos volumes da demanda e da oferta..
Embora os líderes possam ficar tentados a desacelerar ou reduzir as expectativas, o procurement tem um papel central a desempenhar nos esforços para aumentar o lucro por meio da redução das despesas como porcentagem da receita. Vimos situações semelhantes nos esforços de recuperação da crise financeira global de 2008.
Para alcançar o aumento de lucro que muitas organizações estão buscando, os líderes de procurement precisam analisar novas maneiras de gerar valor. O uso da mentalidade base zero nas categorias de gastos pode revelar recursos antes ocultos – o que pode ser crucial para reagir a mudanças significativas na dinâmica da oferta e da demanda. Por exemplo, com a redução da demanda por espaço de escritório em virtude do trabalho remoto, as organizações podem optar por repensar suas estratégias referentes a imóveis e recalibrar seus parâmetros de custos imobiliários.
A adoção de novas tecnologias pode reforçar o impacto da base zero, como no caso de uma empresa de telecomunicações que iniciou recentemente uma jornada para reduzir o custo de seus call centers por meio da tecnologia. De fato, os custos caíram quase pela metade, enquanto a experiência do cliente melhorou substancialmente. Esse sucesso está levando a empresa a buscar a digitalização de ponta a ponta, implantando chatbots, bots de voz e recursos de autoatendimento capazes de praticamente eliminar a necessidade de os clientes entrarem em contato com a empresa.
Abrir novas oportunidades com parceiros
Além do foco no custo, as empresas com funções de procurement avançadas sabem que a colaboração com fornecedores oferece oportunidades para ambas as partes aumentarem a receita e os lucros. De fato, as empresas que inovam regularmente em parceria com fornecedores podem atingir um crescimento maior dos ganhos (até 10%). Assim, não é de surpreender que 88% dos entrevistados nos tenham dito que iniciaram ou pretendem iniciar programas de inovação conjunta com seus fornecedores (Quadro 3). Embora os líderes de procurement relatem que se concentram principalmente em inovações de processos, serviços ou produtos com seus fornecedores, algumas colaborações abrangem inovação no modelo de negócios. Também estão surgindo oportunidades de integração vertical para abrir fontes de valor antes inexploradas.
Um importante player automotivo da Ásia que estava enfrentando pressão de custos e deficiências na demanda devido à COVID-19 voltou sua atenção aos custos dos componentes. Ao estabelecer joint ventures com fornecedores que oferecem tecnologias de ponta, a empresa conseguiu não apenas reduzir o custo das peças, mas também reforçar a estabilidade do supply chain – ao mesmo tempo em que incluiu novas tecnologias em seu arsenal de desenvolvimento de produtos.
Implementar a digitalização e o analytics de gastos
Em nossa pesquisa, 69% dos líderes de procurement disseram considerar que as soluções digitais e de analytics serão ainda mais valiosas, no novo normal, do que são hoje, com maior potencial para aumentar a eficácia do procurement (Quadro 4). Essas tecnologias podem ajudar a identificar novas oportunidades de economia, aprofundar a transparência do supply chain e aumentar a resiliência, ao mesmo tempo em que promovem modelos de trabalho remoto mais colaborativos.
Em particular, foi o analytics de gastos que a maioria dos entrevistados identificou como o caso de uso com maior potencial para respaldar as atividades de procurement, com insights que podem orientar as funções de procurement na priorização de oportunidades de geração de valor e na identificação dos fatores mais importantes para capturar o impacto.
Enquanto as organizações se reinventam para o novo normal, as funções de procurement podem usar esse tempo para criar um roteiro digital que traçará a rota até a função de procurement do futuro. Começando por uma avaliação dos recursos digitais e de analytics necessários ao longo do processo source-to-pay de ponta a ponta, os líderes de procurement podem identificar os pontos que mais precisam de aprimoramento e depois priorizar os casos de uso mais relevantes.
Um fornecedor global de tecnologia que adotou soluções de gastos digitais e por meio de analytics já está aproveitando esses benefícios. Antes da pandemia de COVID-19, ele vinha enfrentando pressões de custo para cumprir suas metas ambiciosas, enquanto os dados estavam fragmentados entre diferentes plataformas, responsáveis e unidades de negócios. Esses desafios foram exacerbados pela dinâmica complexa do mercado e pelos amplos impactos da pandemia nas categorias de gastos. Além disso, os componentes de gastos de cauda longa não estavam nem mesmo sendo levados em conta para otimização devido ao alto esforço manual necessário para incluí-los.
A implementação de uma solução digital levou o cubo de gastos da empresa a outro patamar. Graças ao apoio dos altos executivos, os líderes de procurement conseguiram criar uma equipe multifuncional e equilibrada de stakeholders (inclusive usuários finais), que progrediu rapidamente ao validar um panorama detalhado de fontes de dados. Uma vez incorporados os dados ao cubo remodelado, os usuários podiam personalizar seus próprios insights de cada categoria com informações apresentadas a partir de vários ângulos. Para dezenas de milhares de componentes individuais, os especialistas podiam agora identificar facilmente oportunidades de economia correspondentes a mudanças nos dados de volume de procurement, inclusive estimativas do impacto potencial de disrupções do supply chain em regiões e países específicos. As métricas de desempenho dos fornecedores agora também eram transparentes, permitindo trade-offs mais bem fundamentados.
Com esse cardápio de insights gerando recomendações práticas, a empresa desfruta hoje de análise automática de 100% de suas categorias de gastos, inclusive sua cauda longa – tudo isso agora disponível para os especialistas em procurement envolvidos nas negociações. Hoje, os processos de tomada de decisões são duas vezes mais rápidos do que eram, apesar da transição da empresa para o trabalho remoto impulsionada pela pandemia.
Viabilizar modelos de trabalho remotos
Nossos entrevistados relataram diminuições preocupantes da satisfação dos funcionários em suas equipes de procurement, como consequência direta da pandemia de COVID-19. Cerca de 43% dos líderes de procurement observaram um declínio significativo do moral, e 49% relataram queda da produtividade em virtude do trabalho remoto (Quadro 5).
A queda da produtividade e do moral deveu-se principalmente à falta de eficiência e coesão causada pela ausência de colocalização. Para melhorar essas duas medidas com o aumento da difusão dos modelos de trabalho remotos e flexíveis, as organizações de procurement podem começar a desenhar e implementar um modelo operacional pronto para o futuro. As organizações de procurement que forem capazes de reinventar seu modelo operacional em seis aspectos – processos, tecnologia digital, dados, organização, governança, capacidades e cultura – estarão mais preparadas para elevar o moral e a produtividade dos funcionários no ambiente pós-pandêmico.
Um importante player de logística que precisava entregar projetos de procurement de maior complexidade sem aumentar a equipe encontrou uma solução ao desenvolver um “pool de procurement ágil” com um modelo de colocalização virtual. Entre 40% e 50% da equipe do pool era formada por compradores estratégicos, sendo que analistas de big data, engenheiros de custos, especialistas em negociações e outros profissionais ofereciam capacidades adicionais. Ao alocar recursos dinamicamente, conforme o necessário, o pool ágil dá suporte flexível aos projetos. As reduções de custos têm sido substanciais, mas os impactos mais importantes incluem um melhor compartilhamento de conhecimento e melhores práticas entre divisões e regiões, equipes com o moral mais elevado e melhor atração de talentos. A capacidade de transitar entre os mais diversos tipos de projetos transformou o pool em um ímã para atrair jovens profissionais e funcionários de alto desempenho.
Aprofundar as capacidades, tanto as principais quanto as novas
O ano passado trouxe à tona novos desafios e expôs os pontos fracos de processos de procurement importantes: a pesquisa constatou que 86% dos líderes de procurement observaram lacunas de capacidade em seu processo de procurement (Quadro 6). Essa constatação indica que as principais capacidades provavelmente precisam ser reforçadas por meio de medidas como uma melhor coordenação com as unidades de negócios para direcionar os esforços de procurement enquanto as equipes estão trabalhando remotamente. Também podem ser necessários novos processos, como a incorporação de programas de inovação conjunta com fornecedores estratégicos.
Para ajudar a resolver essas questões, as organizações de procurement precisarão definir os melhores processos e as capacidades necessárias à sua execução – tanto dentro quanto fora da equipe de procurement. As funções de procurement podem iniciar uma jornada de desenvolvimento de capacidades comparando as capacidades individuais e organizacionais, definindo as lacunas nas habilidades principais e novas e desenvolvendo uma abordagem programática para criar capacidades que abordem as principais lacunas nas habilidades.
As necessidades se intensificaram na crise. Por exemplo, desde que as negociações presenciais se transformam em reuniões online, os profissionais de procurement precisam se preparar ainda mais, prestando mais atenção a pequenos detalhes que podem se perder facilmente em conexões de internet instáveis. Por isso, uma empresa multinacional com centenas de profissionais de procurement em todo o mundo implantou uma plataforma digital e interativa de treinamento em procurement, cujo currículo incluía exercícios de noções básicas de negociação, comunicações remotas e comunicações específicas relacionadas à COVID-19, como dicas sobre maneiras de transmitir empatia por e-mail a fornecedores que estejam passando por um período difícil. Ao disponibilizar uma ampla gama de recursos sobre táticas e exemplos de casos, a plataforma forneceu à equipe global de procurement um conjunto de habilidades de negociação e influência que se mostraram essenciais para discussões virtuais com fornecedores.
Traçando o caminho a seguir
Nos próximos 12 meses, à medida que a recuperação dos negócios passa a ser prioridade para muitas organizações, os líderes de procurement podem avaliar por meio de algumas perguntas em que medida sua função está preparada para o novo normal.
- Estamos maximizando a geração de valor em um mundo pós-COVID, por exemplo, reequilibrando a infraestrutura de TI física e na nuvem, renovando os espaços de escritório e acelerando a adoção de novas tecnologias de automação?
- Todas as categorias importantes se adaptaram plenamente às mudanças nas dinâmicas da oferta e da demanda e aos riscos do supply chain?
- Os canais e processos de compra estão aprimorando a experiência do usuário, minimizando a perda de valor e maximizando o desempenho dos fornecedores?
- Quanto valor a mais poderíamos gerar em nossas parcerias, tanto internamente com a empresa quanto externamente com os fornecedores?
- Em que aspectos o investimento adicional em processos, tecnologia digital, dados, organização, governança, capacidades e cultura poderia ajudar o procurement a operar com maior eficiência e eficácia?
Em um contexto global de transição para o novo normal pós-COVID, pode ser tentador para os líderes de procurement se tornarem conservadores demais em suas expectativas de geração de valor, ou então agressivos demais na tentativa de gerar valor sem terem disponíveis os elementos viabilizadores necessários em seus modelos operacionais. Se a história serve de referência, serão necessários esforços paralelos tanto em termos de criar novas fontes de valor quanto de revigorar o modelo operacional para que o procurement prospere.